sexta-feira, 16 de janeiro de 2009
Children in Gaza War 1
“Vale matar crianças usadas por criminosos?” Fábio Wanderley Reis, cientista político e colunista do Valor.
"Em circunstâncias normais na vida doméstica de países democráticos, quando criminosos tomam pessoas inocentes como reféns, o primeiro cuidado, mesmo se as coisas podem ocasionalmente não dar certo, é o de garantir a vida e a segurança dos reféns, o que muitas vezes acarreta a necessidade de delicadas negociações com os criminosos. Nas ações militares como a que agora desenvolve em Gaza, Israel tem se defrontado com situações que apresentam semelhanças com essa, envolvendo criminosos (terroristas) que contam com civis, incluindo crianças, para se defender do fogo inimigo. A postura de Israel, como no episódio das dezenas de vítimas na escola da ONU, em que se alegou que foguetes eram lançados dali, tem sido a de tratar a integridade e mesmo a vida dos civis (e das crianças) como irrelevantes: o que importa é ser eficaz contra os terroristas.
Naturalmente, não é certo que, nas condições do enfrentamento militar de Israel com Hamas ou Hezbollah, caiba falar, sem mais, de "reféns", o que suporia que fossem forçados pelos terroristas a agir como escudo. Tome-se, contudo, a hipótese de que as mulheres e crianças são escudos voluntários. Pode isso ser visto como autorização moral para que Israel as trate simplesmente como alvos militares? Essa posição redundaria em sustentar, no caso de o movimento ou partido responsável pelo terrorismo ser popular (ganhando eleições, por exemplo, como se deu com o Hamas), que Israel, com sua grande força militar, está autorizado, no limite, em nome de sua defesa, a exterminar toda uma população. Tratar-se-ia da reafirmação, nas palavras de David Bidussa em artigo no número 62 da revista "Estudos Avançados" ("A Religião da Política em Israel"), de "um mito de fundação constitutivo da religião civil israelense: o da ´pureza das armas´, ou seja, da ação do exército como medida defensiva e nunca como ´guerra suja´".
As análises e discussões na imprensa sobre a invasão de Gaza têm correspondido com freqüência seja a manifestações de indignação ou edificantes exortações, em geral envolvendo a tomada de posição em favor de um lado ou outro, seja ao exame "técnico" dos pormenores do xadrez político-militar da região. O xadrez é sem dúvida complicado, e não há como negar a difícil situação de Israel, imerso num contexto que lhe é hostil desde o começo e inclui atores empenhados em sua destruição. Se fosse de alguma serventia a esta altura, caberia destacar o papel cumprido, na criação das dificuldades que o país se vê forçado a enfrentar, por decisões condicionadas pelos interesses ou disposições circunstanciais de poderes mundiais decadentes ou em ascensão e em que pouco se fez ouvir a voz da população árabe, combinadas à má consciência produzida pela longa história de maus-tratos dos países europeus aos judeus e seu paroxismo no Holocausto.
Seja como for, o que temos agora é a reiteração de um traço dos conflitos militares em que, desde a Segunda Guerra Mundial, as velhas considerações morais referidas à guerra, e consagradas em convenções meio esquecidas, se vêem substituídas pelo etos associado à idéia da guerra total. Além de casos como Guernica, ou dos civis de Londres vitimados por bombas voadoras nazistas, também os civis de Dresden, para tomar um exemplo mais dramático, foram impiedosamente bombardeados pelos aliados em circunstâncias de justificação moral mais que discutível. Sem falar de Hiroshima e Nagasaki e do hediondo crime envolvido em seu bombardeio atômico por razões mal disfarçadas de cálculo político - e dos numerosos casos, nas décadas recentes, de uso pelos Estados Unidos de avassalador poderio aéreo em que, igualmente, populações civis foram duramente atingidas. Por que esperar que Israel não mate crianças para caçar terroristas em áreas de densas populações urbanas? Trata-se apenas de mais do mesmo em relação às ações de muitos países há muito tempo.
Infelizmente, o que uma perspectiva realista evidencia é que o infantilismo moral que caracterizou desde sempre as relações entre etnias e nações distintas (e ilustrado agora de maneira desconcertante por ninguém menos que Shimon Peres a declarar, a propósito de crianças palestinas mortas pelo fogo israelense, em contraste com "quase nenhuma criança israelense", que "nós cuidamos das nossas crianças") tende a ser favorecido e intensificado nas condições demográficas e tecnológicas das guerras contemporâneas. Quanto ao conflito no Oriente Médio, as chances de reduzir a ocorrência do recurso aberto às armas parecem depender ou de que se alcance maior equilíbrio no poderio militar dos países e forças envolvidos, criando maior disposição a negociar, ou de que a convergência de circunstâncias favoráveis no plano internacional venha a permitir a efetiva intervenção pacificadora de um poder externo e maior. Antes que as coisas desandassem com o 11 de setembro de 2001 e George W. Bush, tivemos, na guerra do Golfo, a conjunção favorável de fatores de "Realpolitik" e fatores de legitimidade e legalidade internacional, com a força militar dos Estados Unidos sendo empregada, sob o manto da especial legitimidade da ONU, para exercer ação de polícia diante de flagrante violação de regras internacionais pelo Iraque de Saddam Hussein - não obstante as dificuldades contidas no inaceitável princípio de responsabilidade coletiva, resultando ele próprio em sancionar que indivíduos inocentes eventualmente paguem pelas decisões criminosas deste ou daquele chefe de Estado; escapar disso, porém, exigiria um governo mundial não apenas internacional, mas efetivamente transnacional. De todo modo, talvez as mudanças esperadas com Barack Obama na política externa americana propiciem a retomada do caminho aí esboçado."
"Em circunstâncias normais na vida doméstica de países democráticos, quando criminosos tomam pessoas inocentes como reféns, o primeiro cuidado, mesmo se as coisas podem ocasionalmente não dar certo, é o de garantir a vida e a segurança dos reféns, o que muitas vezes acarreta a necessidade de delicadas negociações com os criminosos. Nas ações militares como a que agora desenvolve em Gaza, Israel tem se defrontado com situações que apresentam semelhanças com essa, envolvendo criminosos (terroristas) que contam com civis, incluindo crianças, para se defender do fogo inimigo. A postura de Israel, como no episódio das dezenas de vítimas na escola da ONU, em que se alegou que foguetes eram lançados dali, tem sido a de tratar a integridade e mesmo a vida dos civis (e das crianças) como irrelevantes: o que importa é ser eficaz contra os terroristas.
Naturalmente, não é certo que, nas condições do enfrentamento militar de Israel com Hamas ou Hezbollah, caiba falar, sem mais, de "reféns", o que suporia que fossem forçados pelos terroristas a agir como escudo. Tome-se, contudo, a hipótese de que as mulheres e crianças são escudos voluntários. Pode isso ser visto como autorização moral para que Israel as trate simplesmente como alvos militares? Essa posição redundaria em sustentar, no caso de o movimento ou partido responsável pelo terrorismo ser popular (ganhando eleições, por exemplo, como se deu com o Hamas), que Israel, com sua grande força militar, está autorizado, no limite, em nome de sua defesa, a exterminar toda uma população. Tratar-se-ia da reafirmação, nas palavras de David Bidussa em artigo no número 62 da revista "Estudos Avançados" ("A Religião da Política em Israel"), de "um mito de fundação constitutivo da religião civil israelense: o da ´pureza das armas´, ou seja, da ação do exército como medida defensiva e nunca como ´guerra suja´".
As análises e discussões na imprensa sobre a invasão de Gaza têm correspondido com freqüência seja a manifestações de indignação ou edificantes exortações, em geral envolvendo a tomada de posição em favor de um lado ou outro, seja ao exame "técnico" dos pormenores do xadrez político-militar da região. O xadrez é sem dúvida complicado, e não há como negar a difícil situação de Israel, imerso num contexto que lhe é hostil desde o começo e inclui atores empenhados em sua destruição. Se fosse de alguma serventia a esta altura, caberia destacar o papel cumprido, na criação das dificuldades que o país se vê forçado a enfrentar, por decisões condicionadas pelos interesses ou disposições circunstanciais de poderes mundiais decadentes ou em ascensão e em que pouco se fez ouvir a voz da população árabe, combinadas à má consciência produzida pela longa história de maus-tratos dos países europeus aos judeus e seu paroxismo no Holocausto.
Seja como for, o que temos agora é a reiteração de um traço dos conflitos militares em que, desde a Segunda Guerra Mundial, as velhas considerações morais referidas à guerra, e consagradas em convenções meio esquecidas, se vêem substituídas pelo etos associado à idéia da guerra total. Além de casos como Guernica, ou dos civis de Londres vitimados por bombas voadoras nazistas, também os civis de Dresden, para tomar um exemplo mais dramático, foram impiedosamente bombardeados pelos aliados em circunstâncias de justificação moral mais que discutível. Sem falar de Hiroshima e Nagasaki e do hediondo crime envolvido em seu bombardeio atômico por razões mal disfarçadas de cálculo político - e dos numerosos casos, nas décadas recentes, de uso pelos Estados Unidos de avassalador poderio aéreo em que, igualmente, populações civis foram duramente atingidas. Por que esperar que Israel não mate crianças para caçar terroristas em áreas de densas populações urbanas? Trata-se apenas de mais do mesmo em relação às ações de muitos países há muito tempo.
Infelizmente, o que uma perspectiva realista evidencia é que o infantilismo moral que caracterizou desde sempre as relações entre etnias e nações distintas (e ilustrado agora de maneira desconcertante por ninguém menos que Shimon Peres a declarar, a propósito de crianças palestinas mortas pelo fogo israelense, em contraste com "quase nenhuma criança israelense", que "nós cuidamos das nossas crianças") tende a ser favorecido e intensificado nas condições demográficas e tecnológicas das guerras contemporâneas. Quanto ao conflito no Oriente Médio, as chances de reduzir a ocorrência do recurso aberto às armas parecem depender ou de que se alcance maior equilíbrio no poderio militar dos países e forças envolvidos, criando maior disposição a negociar, ou de que a convergência de circunstâncias favoráveis no plano internacional venha a permitir a efetiva intervenção pacificadora de um poder externo e maior. Antes que as coisas desandassem com o 11 de setembro de 2001 e George W. Bush, tivemos, na guerra do Golfo, a conjunção favorável de fatores de "Realpolitik" e fatores de legitimidade e legalidade internacional, com a força militar dos Estados Unidos sendo empregada, sob o manto da especial legitimidade da ONU, para exercer ação de polícia diante de flagrante violação de regras internacionais pelo Iraque de Saddam Hussein - não obstante as dificuldades contidas no inaceitável princípio de responsabilidade coletiva, resultando ele próprio em sancionar que indivíduos inocentes eventualmente paguem pelas decisões criminosas deste ou daquele chefe de Estado; escapar disso, porém, exigiria um governo mundial não apenas internacional, mas efetivamente transnacional. De todo modo, talvez as mudanças esperadas com Barack Obama na política externa americana propiciem a retomada do caminho aí esboçado."
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